Mães vazam. Li isso em algum texto ou encontro sobre maternidade. Mas isso só faz sentido de fato quando acontece com a gente.
Mães vazam muito sangue no pós-parto. É o corpo se desfazendo da estrutura
interna que não se faz mais necessária quando o bebê está do lado de fora.
Mães vazam leite. Quando chega a hora do bebê se alimentar e
o corpo sabe que precisa se fazer alimento ou quando o bebê chora e o corpo
sabe que precisa ser refúgio desse novo ser. Muita gente não sabe disso, mas o
corpo da mãe sabe do que o bebê precisa e trabalha para sanar suas
necessidades. E isso não depende da vontade consciente da mãe naquele momento e
em muitos casos não depende também do bebê sugar o seio. Basta existe um bebê
faminto e carente que o corpo da mãe, sabendo disso, começa a vazar.
Mães vazam também pelos olhos. Vazam de dor, cansaço, amor, alegria ou tristeza,
medo, insegurança, dúvida, preocupação. Vazam muito no início, quando também
são mães recém-nascidas, mas não somente. Mães vazam pela vida que lhes escapa
pelas mãos, pela falta de controle dela mesma, do ser depende dela e do mundo
que não para porque ela virou mãe.
Hoje passei, mais uma vez, por isso. Por esse vazar que vai
além da racionalidade. De um lado, o profissional: fim da licença maternidade,
pandemia, home office, aulas, trabalhos acumulados, leituras, pesquisas,
correções, alunas/os, novas e desafiantes tecnologias. Do outro, o maternar e a
realidade de um bebê de sete meses: nova rotina, introdução alimentar, sono,
fome, salto de desenvolvimento, inabilidade para lidar com as próprias emoções,
percepção de que a mãe pode se afastar dele e que ele e ela não são a mesma
pessoa, angústia da separação.
No escritório, de portas fechadas, a mãe. Ou melhor, a
professora que tenta retomar o trabalho tentando equilibrar todos os pratinhos
e todas as identidades que possui. Do lado de fora o bebê, que por algum desses
vários motivos (ou até mesmo sem motivo) chora como forma de expressar o que
sente, mas não sabe dizer. Esse foi um daqueles momentos em que vazei sem
querer, sem racionalizar, sem conseguir me controlar. Pausa na aula para
abraçar e consolar a cria, que na verdade fez com que a mãe também vazasse num
choro difícil de controlar. Está tudo bem, ele está sendo super bem cuidado
pelo pai. Não está com fome, sono ou com dor. Racionalmente eu sei disso. Mas
mesmo assim vazamos os dois, o bebê e a mãe, sem sabermos ao certo o porquê.
Tento voltar ao trabalho, mas não consigo parar de vazar. De
pensar em como estar em dois lugares ao mesmo tempo, principalmente porque ambos
são importantes e eu quero estar em todos eles. Vazo porque sou fêmea, mãe,
porque minha cria precisa emocionalmente de mim e eu dela. Vazamos pela
separação, pelo vago entendimento de que não se pode ter tudo ao mesmo tempo e
o tempo todo.
Penso na minha realidade, mas também na de tantas outras
mães que não tem os privilégios que eu tenho e que não podem sequer vazar suas
emoções. Mães que não tem escolha e que precisam deixar seus filhos em meio a
uma pandemia e se afastar por uma distância muito maior do que a do meu
escritório para a cozinha. Mães sem rede de apoio ou mínimas condições sociais
ou financeiras. Penso nos bebês e no difícil aprendizado de “virar gente
grande” pelo qual todos passamos. Penso novamente no ensinamento mais
importante que a maternidade me trouxe até aqui, o de que não temos controle de
nada na vida e que é preciso dançar com o caos para não surtar. Ou melhor, para
surtar só de leve, um pouquinho de cada vez, já que surtar, na minha opinião,
faz parte do pacote materno.
Enfim, se você é mãe, receba o meu abraço e saiba que você pode vazar o quanto
quiser e for necessário porque isso é visceral e está além do suposto controle
que temos a ilusão de ter. Você não está sozinha! Compartilhamos desses
sentimentos tão poucas vezes expressados (infelizmente, porque ajudaria muito saber
que “que não é só comigo”).
Se você não é mãe, saiba que as mães vazam de diferentes
formas e eu acredito mesmo que por toda a vida. Acolha, entenda, dê o suporte
que elas precisam. O processo de gerar uma vida não termina no parto. Maternar
é um trabalho de extrema relevância não só pessoal e familiar, mas também
social, que vamos levar por toda a existência e que todos precisam acolher e
apoiar.
Mães vazam. Hoje eu vazei (vazamos) um pouquinho mais e achei importante
registrar isso em forma texto.
Por: Flávia Martins (mãe do Théo, mulher, esposa, professora
universitária, doutora, pesquisadora e um bocado de outras coisas)