"Cidadão não, engenheiro civil, formado. Melhor do que você!"



Simone Antoniaci Tuzzo

Essa frase é carregada de preconceito, de ignorância, de soberba, entre tantos outros adjetivos e substantivos que poderíamos destacar para qualificá-la, mas analisá-la nos mostra que ela é muito mais grave do que aquilo que foi dito. Ou seja, não bastasse o que ela representa, o que nela está obscuro é muito mais perverso do que aquilo que dela aflora.
A frase em questão ficou famosa depois de ser exibida em uma reportagem no Programa Fantástico da Rede Globo de Televisão no último dia 5 de julho. As palavras foram ditas por uma mulher, quando ela e o marido foram abordados pelo superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da prefeitura do Rio de Janeiro durante uma inspeção na região da Barra da Tijuca por conta da Pandemia da Covid-19.
Sem máscaras o casal que estava em um restaurante no momento da abordagem ofendeu o fiscal dizendo ainda: “A gente paga você, filho. O seu salário sai do meu bolso”.
Em uma análise primária vemos que as expressões "engenheiro civil"; "melhor do que você", "a gente paga você" e "cidadão não" se juntam para expressar que tinham dinheiro e não eram cidadãos porque tinham qualificação e diploma universitário.
O que nos interessa nesse discurso é a representação da palavra cidadania e o acúmulo de interpretações que essa palavra vem sofrendo durante anos, fazendo com que a representação da palavra extrapole o seu significado, ou seja, o que a mídia e a sociedade definem por cidadania.
Em 2014 publiquei o capítulo de um livro intitulado "O lado Sub da Cidadania a partir de uma leitura crítica da Mídia", produzido por mim e por meus alunos matriculados na disciplina “Cidadania e Leitura Crítica da Mídia” do curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás.
Nele, a partir do resultado de meses de pesquisas feitas em diversas mídias brasileiras pudemos constatar que a cidadania como conceito é uma condição a todos que pertencem a uma determinada nação. Ser cidadão é ter os direitos e deveres de uma determinada localidade, por isso a cidadania Brasileira é diferente da Cidadania Italiana, Portuguesa, Chinesa, por exemplo. No sentido ideal, a cidadania representa muito mais do que nascer, mas, sobretudo, significa o existir socialmente.
O termo cidadania é histórico-social e depende do ambiente e das condições sociais em que uma pessoa está inserida, por isso a necessidade de também pensarmos a questão da sociabilidade que naturalmente torna um ser humano capaz de conviver em sociedade por meio da socialização, ou seja, a integração dos indivíduos em um grupo marcado por hábitos, costumes e regras específicas.
Contudo, pensar em cidadania no discurso midiático é algo que extrapola os conceitos clássicos daquilo que é cidadania e de tal forma se esgota, fazendo com que tudo hoje seja sinônimo de construção de cidadania e, ao se pensar na construção da cidadania, também nos reportamos ao significado de subcidadania. Para se investigar o que a mídia apresenta como cidadania e subcidadania é importante refletir sobre o significado dessas palavras.
Ser cidadão é ter direito à vida, liberdade, propriedade, igualdade perante a lei, ou seja, o que chamamos de direitos civis. É também votar e ser votado, e com isso ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos só estarão completos com os direitos sociais, que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, à segurança, à saúde, ao transporte, ao lazer, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais.
Contudo, de uma forma geral, nos discursos midiáticos, as pessoas não são tratadas como cidadãs, mas sim, tratadas pelo trabalho que desenvolvem na sociedade, ou seja, na grande maioria das matérias jornalísticas existentes na mídia, as pessoas são destacadas como: médico, advogado, motorista, estudante, engenheiro, vendedor. A função social é utilizada como significante de cada indivíduo e, subliminarmente há um reforço do trabalho com a cidadania. Estar empregado é ser cidadão, assim como ter um título acadêmico e uma profissão, logo, pertencer às classes sociais mais altas. Mas ser cidadão, paradoxalmente é uma condição de ser, mas não de dizer.   
Assim, difícil encontrarmos na mídia uma relação do termo cidadania com o que faça referência às classes A e B, mas sim, com tudo que se refere às classes sociais economicamente menos favorecidas, ou seja, D e E. O povo é tratado como o pobre e o conceito de cidadania é trabalhado como algo não alcançado ainda pelas classes menos favorecidas economicamente. Fica absolutamente implícito nos discursos a referência à busca pela cidadania quando a palavra cidadão também tem um conceito pejorativo de sujeito menor socialmente falando. Cidadania aparece ligada ao povo, à pobreza, à precariedade.
Quando há uma abordagem de um intelectual, ele é tratado por senhor, às vezes por doutor. Mas se há uma abordagem de alguém mais pobre, humilde, a referência usada é de cidadão. Há uma retórica pejorativa de impacto coletivo do significado de cidadania e isso se reflete na sociedade que vai identificando em diversos movimentos a relação de cidadania e pobreza. Quem nunca ouviu a autoridade dizer: "E aí cidadão? Tá na rua fazendo o quê?".
O conceito midiático de cidadania materializa-se e reforça-se na figura do assistencialismo estatal, do atendimento emergencial, da resolução parcial dos problemas que, supostamente, já deveriam ter sido suplantados (esgoto, asfalto, segurança, saneamento, educação etc.). Ser cidadão está mais para pedinte, deficiente, pobre e ignorante do que para um indivíduo consciente e com uma conduta embasada em valores éticos vigorosos, centrados no individual, mas, também, na coletividade, na dignidade e liberdade para decisões! Ser cidadão, afora a identidade de eleitor, hoje no Brasil, é ser também um indivíduo periférico, alheio e fora dos centros decisórios. Só se é cidadão para votar e não para participar dos processos de decisões!
O discurso midiático se traveste de uma preocupação em esclarecer, munir de informações, didaticamente explicar as formas de alcance da cidadania, em ações que vão desde um mutirão para cortes de cabelo e aquisição de documentos como certidões de casamento, nascimento, registros gerais (RG), carteiras de trabalho, enfim, formas legais de inserção na sociedade.
A mídia apresenta, muitas vezes, o conceito de cidadão/cidadania como algo em busca, o ideal de quem ainda não é cidadão e precisa chegar a essa categoria existencial. Com isso, usa expressões como: O restaurante cidadão; o departamento de apoio ao cidadão; as ações de cidadania da prefeitura ou do bairro; o movimento cidadão, enfim, termos usados rotineiramente com a boa vontade de integrar pessoas que vivem à margem da cidadania em uma esfera de cidadania, mas que, muitas vezes confunde o real significado do que é ser cidadão.
Por isso, há necessidade ainda de um grande trabalho da sociedade para fazer com que todos sejam cidadãos e para que cidadania deixe de ser um pronome de tratamento, uma condição a ser buscada, e se torne uma realidade de existência social.

Simone Antoniaci Tuzzo é Relações Públicas, Pós-Doutora em Comunicação, professora do Curso de Relações Públicas e do PPGCM da Universidade Federal de Goiás – UFG. <www.simonetuzzo.com> E-mail: simonetuzzo@hotmail.com