Existe uma vida que vale mais?


 Gardene Leão de Castro*

Nos últimos meses, o mundo vive uma crise nunca antes vista. O COVID-19 já infectou milhares de pessoas, muitos foram à óbito e o planeta parou. Médicos e especialistas da saúde passam os dias em noticiários informando sobre as precauções que todos devemos ter e da importância do isolamento social neste momento para conter o avanço da doença e não sobrecarregar o sistema de saúde.
O mundo parece saber da importância dos cuidados e do isolamento social neste contexto. Contudo, em nosso país, excepcionalmente no Brasil, temos um presidente que não se atenta às orientações de isolamento social, demanda à volta ao trabalho em nome da economia e faz pouco caso da doença, dizendo que é “só uma gripezinha” e “que nada teria, devido ao seu histórico de atleta”.
Sim, ele, devido ao seu “histórico de atleta”, talvez nada tivesse como sintoma. Mas ele não é profissional da saúde para saber com exatidão das consequências da doença para ninguém, inclusive para si mesmo. Ao não se resguardar, ele está colocando em risco não somente a sua vida, mas a das pessoas com as quais ele tem convívio social.
O novo ministro da saúde, Nelson Teich, em entrevista dada anteriormente, que circula nas redes sociais, afirma que: "E, se tem uma outra coisa que é fundamental, é que como você tem dinheiro limitado, você vai ter que fazer escolhas. Então você vai ter que definir onde você vai investir. Então, sei lá, eu tenho uma pessoa que é uma pessoa mais idosa, que tem uma doença crônica, avançada, e ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para investir num adolescente, que tá com um problema. O mesmo dinheiro que eu vou investir lá é igual. Só que essa pessoa é um adolescente que vai ter a vida inteira pela frente, e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha? Então são duas coisas importantíssimas na Saúde hoje é (sic): o dinheiro é limitado e você tem de trabalhar com essa realidade. A segunda coisa: escolhas são inevitáveis. Quais vão ser as escolhas que você vai fazer, né?" (Veja o vídeo na integra: https://youtu.be/LvlHmrZVoCc).
Nesta fala, me questiono: existe vida que vale mais? Quem você escolheria para ir para uma UTI, se tivesse apenas uma vaga: sua mãe idosa ou seu filho adolescente? Existe medida para amor, independente da idade?
Ao discutir os dispositivos atuantes no biopoder, Foucault (2005) aponta como o racismo se inseriu como mecanismo fundamental exercido nos Estados modernos, decidindo quem deve viver e quem deve morrer. A distinção das raças e a qualificação das raças “superiores” como boas e outras como “inferiores” acabou por fragmentar o campo do biológico, estabelecendo uma censura que subdivide espécies.
Foucault (2005) afirma que o racismo também tem outra função: uma relação que autoriza a grande quantidade de morte do indivíduo “anormal’. Portanto, quanto mais indivíduos considerados “anormais” forem eliminados, menos “degenerados” e mais pura será a raça superior. O racismo seria, então, a condição de aceitabilidade de tirar a vida em uma sociedade de normalização. O autor afirma que tirar a vida não é simplesmente o assassinato direto, mas também tudo o que pode ser assassinato indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte, a morte política, a rejeição etc.
Ao fazer uma relação com a discussão do racismo proposta por Foucault (2005) com o discurso do novo ministro Nelson Teich, podemos ver uma atualização de racismo, no caso do COVID-19, com as pessoas idosas. Se tiver que escolher entre uma vida de idoso e a vida de uma pessoa jovem, o médico não hesitará em escolher a vida da pessoa jovem. O idoso, na nossa sociedade, é descartável, pois não fará falta. Como fica a cabeça de uma pessoa idosa ou que faz parte do grupo de risco ao ver falas absurdas como essa? Onde está a nossa humanidade?
Venho questionar se Jair Bolsonaro não seria o novo rei soberano, discutido por Foucault (1987), que decide quem pode viver e pode morrer neste contexto de pandemia. Ao pedir o retorno ao convívio social, ele está expondo à morte, multiplicando para as pessoas que estão no grupo de risco a possibilidade de morte, como argumenta Foucault (2005). É preciso que nos questionemos, que nos angustiemos e coloquemos a discussão do valor da vida em primeiro lugar.
Não é decidir sobre quem deve viver e quem deve morrer. É lutar pela vida como um direito de todos. Existirão perdas na economia: sim. Mas escolho a vida, em primeiro lugar, assim como Jesus e os mandamentos religiosos, tão defendidos na teoria pelo presidente da república, mas pouco praticados em seus atos desde o início da pandemia do COVID-19. Pedir jejum religioso num momento como esse é até mesmo ofensivo. É preciso defender todas as vidas e não as expor ao risco. Menos discurso e mais prática, senhor presidente!

*Professora da FIC - UFG. Doutora em Sociologia. Mestre em Educação. Pós-Graduada em Assessoria de Comunicação e em Juventude. Relações Públicas.